Quando a vela apaga
“Nada é mais certo no mundo que a morte e os impostos.”. Benjamin Franklin escreveu essa frase em 1789, mas ela já existia bem antes. E hoje não vamos falar sobre impostos.
É fato que um dia todos nós deixaremos este mundo, assim como é fato que todos nós um dia passaremos pela experiência de que alguém que amamos deixe este mundo, a não ser que você seja um narcisista ou psicopata e não ame nada nem ninguém, a não ser você mesmo.

Um belo dia, a vela que representa aquela pessoa no mundo se apaga, e ela deixa de existir. O que vem depois, tanto para a pessoa que se foi, quanto para quem fica, não se sabe. A única coisa que sabemos é que existe a tristeza, a culpa, o medo, a raiva e, finalmente, a aceitação.
O que é o luto?
O luto é um processo que atravessamos após passar por uma perda significativa, não necessariamente a morte de alguém querido. O luto pode se originar a partir da perda do emprego, da notícia de um quadro negativo de saúde (diabetes ou câncer, por exemplo, já que se perde a saúde), do diagnóstico de autismo em um filho pequeno (onde muitas vezes se perdem a esperança e as expectativas), do divórcio, mesmo que a outra parte seja extremamente tóxica (porque afinal, se perdem anos de convivência). Enfim, o luto se origina de uma perda. Pode ser que algum dia, eu venha a falar sobre essas outras formas de luto, mas hoje, vou falar sobre o luto pelo falecimento de alguém querido.

Acredito que o modelo mais aceito para explicar o luto é o modelo da psiquiatra suíça Elizabeth Kübler-Ross, em que ela descreve cinco estágios do luto: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Porém, o trabalho de Elizabeth se baseava nas pessoas que estavam no leito de morte, sendo o luto descrito por ela, o luto das próprias pessoas que iam falecer, e não o luto dos seus familiares. Por essa razão, o modelo Kübler-Ross também é utilizado para descrever os estágios das mudanças, já que as pessoas que vão passar pelas mudanças perderão alguma coisa para ter algum ganho. Neste post, não vamos entrar no detalhe deste modelo, já que o foco é você, que está perdendo alguém, ou perdeu.
O turbilhão de emoções
Existem vários modelos que descrevem o processo de luto dos familiares e amigos, mas todos eles praticamente falam do que eu escrevi lá em cima: tristeza, culpa, medo, raiva e aceitação. Alguns modelos dirão que existe uma ordem para esses ciclos, outros dirão que nem todas as fases são obrigatórias, mas todos eles descrevem, em maior ou menor medida, essas fases, ou processos que o enlutado atravessa.
O que eu defendo é que nem todo mundo sente essas fases da mesma forma, algumas podem ser mais intensas que outras, dependendo de vários fatores como a personalidade da pessoa, as circunstâncias da morte, o apego, a rede de apoio e as estratégias de enfrentamento.

As emoções têm um papel muito importante de regulação e compensação na mente humana, ou seja, elas surgem a partir de um evento desestabilizador e vão durar até que a pessoa seja novamente estabilizada.
A Tristeza
A tristeza é uma emoção facilmente reconhecida na maior parte dos casos. A pessoa diminui as atividades, se sente mais retraída, podendo ou não acontecer o choro. O tom de voz tende a ser mais baixo e o engajamento nas atividades individuais e/ou interpessoais diminui.
É comum encontrar a definição da tristeza como sendo uma “emoção negativa”. Não gosto desse termo porque dá a ideia de que sentir-se triste é uma coisa ruim, e isso não é verdade. A tristeza tem uma função, que é a de compensar uma perda. Nos sentimos tristes quando sentimos que perdemos algo, e isso é exatamente sobre o que o luto é. Sobre perdas. A tristeza não dura até que a pessoa recupere a pessoa perdida, já que isso não vai acontecer. A tristeza dura até que essa fase (ou mesmo o próprio luto) seja superada, o que não significa que a pessoa jamais volte a ficar triste por se lembrar do falecido, mas é um sentimento diferente.

No mestrado, aprendi uma fábula sobre a tristeza que dizia que uma vez a tristeza e a ira foram tomar banho no rio. A ira acabou se lembrando de um compromisso e precisou sair correndo mais cedo e, na correria, acabou usando as roupas da tristeza por engano. Quando a tristeza percebeu, colocou as roupas da ira mesmo e foi embora. Por isso, muitas vezes vemos uma pessoa passando por um processo de luto descontando sua frustração em tudo e em todos, mas aquilo não é ira, mas sim, tristeza, só que com as roupas da ira.
A Culpa
A culpa é um sentimento que surge a partir da ideia, muitas vezes distorcida, de que poderíamos ter feito mais. A culpa varia, desde sentir-se culpado pela morte da pessoa, até o sentimento de que poderia ter passado mais tempo com a pessoa falecida, ou ainda dado melhor qualidade de vida.
A culpa surge em decorrência do nosso convívio em sociedade e seu propósito é evitar que certas condutas incompatíveis com as normas sociais se repitam. Sociedade, aqui, não significa, necessariamente, sua cidade ou país, mas o convívio social. Se você não tem pessoas com quem você não se importe socialmente, não tem porque sentir culpa.

A culpa, normalmente, não é sentida sozinha. Ela é, quase sempre, acompanhada da tristeza. Mas a característica mais marcante da culpa são os pensamentos distorcidos que acompanham a pessoa. Esses pensamentos podem ser ditos em voz alta, podem soar na cabeça na pessoa como se fosse uma terceira pessoa dizendo esses pensamentos, ou a pessoa também pode dizê-los a si mesma, especialmente no caso do luto.
Existem muitas formas de encarar a culpa, desde a tentativa de reparação dos danos causados, até o enfrentamento das distorções cognitivas. Cada caso é único e deve ser analisado com calma.
O Medo
Acredito que o medo seja uma das emoções mais primitivas do ser humano. Já falei sobre a prima mais famosa do medo, a ansiedade, que é a reação que temos diante da possibilidade de uma ameaça. No caso do medo, a ameaça é real. Ou é bem convincente.
Mas, se eu acabei de perder alguém, porque eu teria medo? Um exemplo bem prático é o caso de uma pessoa sedentária que perde um familiar próximo (pai, mãe, irmão…) por infarto, e essa pessoa também era sedentária. Sim, a pessoa vai ter medo de morrer da mesma maneira. E essa é a função do medo: a sobrevivência. É melhor fugir hoje e continuar vivo amanhã.

Da mesma maneira, se um pai perde um filho por afogamento, é muito provável que esse pai proíba outros filhos de irem nadar no mesmo lugar que o outro filho morreu por medo de que o mesmo aconteça a eles. O medo não é uma emoção ruim, mas é muito importante controlar esse medo e ponderar se as decisões tomadas estão sendo guiadas pela razão, e não pela emoção.
O medo é vencido quando a situação causante é confrontada: no exemplo do infarto, uma bateria de exames e algumas mudanças no estilo de vida podem resolver o problema. No exemplo do afogamento, matricular os filhos na natação, ou ainda a supervisão podem ajudar.
A Raiva
Assim como a tristeza, a raiva é relativamente fácil de se identificar. A pessoa emana a vontade de causar dano a alguém ou alguma coisa, seja de forma física, verbal, moral, ou de qualquer outra forma. Ao contrário do que muitas pessoas pensam, a raiva não tem função de sobrevivência. A presa não tem raiva do predador: a presa tem medo do predador, por isso ela reage. A raiva surge diante da percepção de injustiça.
A injustiça se aplica no caso do luto, principalmente, quando ocorrem casos de morte repentina ou inesperada. Quando a pessoa já se encontrava em estado de doença terminal, ou sofre um acidente em que não ocorre morte imediata, porém existe um tempo de luta entre a vida e a morte em um hospital, por exemplo, o luto já começa antes, e os familiares se preparam para a perda. No caso de mortes repentinas, a percepção de injustiça normalmente é maior, por exemplo, em casos de infarto fulminante, vítimas de crimes, ou ainda, acidentes de trânsito com morte imediata.

A raiva, assim como o medo, desperta para a ação: de alguma forma, a pessoa tratará de compensar aquela injustiça causando dano (você me causou dor, eu vou te causar dor de volta). Caso essa injustiça não possa ser compensada, eventualmente a raiva desaparece, dando lugar somente à tristeza, até que esta se vá. Assim como a culpa, a raiva deve ser analisada de maneira individual, seja confrontando a percepção de injustiça, seja buscando a compensação dessa injustiça. Note que, aqui eu falo de justiça e compensação, nunca de vingança. A vingança nunca busca reparação, só a destruição do outro lado e do que estiver no caminho.
A Aceitação
Comum em vários modelos descritivos do luto, a aceitação é a fase final do luto. Superar o luto não significa que esquecer a pessoa, ou aceitar que você não precisa mais dela, ou que essa pessoa já não faz falta. A superação do luto significa que você aceita que essa pessoa se foi e não vai mais voltar. Mais importante que isso: não signfica que você não vai chorar sempre que se lembrar dessa pessoa, ou se emocionar ao falar dela – significa que sempre que você se lembrar ou falar dessa pessoa, você vai conseguir fazer isso sem sentir dor.

O luto, assim como o perdão, é um processo de cicatrização. Quando perdemos alguém, existe um dano, uma ferida muito profunda que se abre, e essa ferida fica aberta, até que um dia ela se fecha. Pode parecer que ela já está completamente curada, e mentimos para nós mesmos dizendo que estamos bem, mas de repente, batemos com essa ferida no canto da mesa, e a casca cai, revelando-a aberta novamente. E o processo continua até, finalmente, a ferida fecha, e fica uma cicatriz. Aquela marca está ali para nos lembrar do que aconteceu, mas já não dói como acontecia antes.
Quando o luto é um problema?
A revisão textual de 2022 do DSM-5 fala que o luto passa a ser um problema depois de um ano da morte da pessoa, ou seis meses para crianças e adolescentes quando descreve o Transtorno por luto prolongado. Claro que só o tempo não é o único indicador, afinal, cada pessoa é única, com diferentes circustâncias de morte, e graus de parentesco. O luto passa a ser um problema quando é incapacitante e traz transtornos para a pessoa.
Entre os sintomas, podemos dizer que estão a preocupação excessiva pelas memórias do falecido, dor emocional intensa, dificuldade em aceitar a morte ou encarar lembranças que remetam à morte do falecido, dificuldade em realizar atividades do dia a dia… e, principalmente, a duração do luto excede em muito o que é esperado para a cultura da pessoa.

Normalmente as pessoas que não puderam superar o luto sabem disso. É uma queixa muito comum no consultório: “Há x anos, minha mãe faleceu, ainda não superei.”. Então, se você acha que já deveria ter superado o luto há algum tempo, mas sente que não, procure ajuda.
Como superar o luto?
Como eu já falei antes, o luto vem em “fases”, que podem existir ao mesmo tempo, ou podem não ser vivenciadas. A aceitação vem no final, porque é quando a tristeza, a raiva, a culpa e o medo por conta do luto deixam de existir. A melhor forma de superar o luto é vivenciando esse luto.
Respeite a si mesmo. Se te chamarem para sair, para espairecer, só aceite o convite se você estiver realmente a fim de sair. Se você quiser ficar em casa chorando o dia inteiro, faça isso. O luto é uma fase, e seus amigos vão te respeitar.
Salvo em casos de recomendações médicas, não faça uso de substâncias psicotrópicas como antidepressivos, medicação para dormir, álcool, cigarro, etc. Por pior que seja o que você está sentindo, eventualmente essa sensação vai passar. O uso de drogas neste momento tão delicado pode afetar a forma como o luto é vivenciado e contribuir no futuro para um caso de luto prolongado e trazer mais dor e sofrimento.

Sobre as coisas do falecido, não existe regra: tem gente que prefere se livrar de tudo, tem gente que prefere guardar tudo. O que você escolher está bom, desde que faça sentido para você, e que você reconheça que não está se apegando àqueles objetos para evitar aceitar que a pessoa se foi. Existem pessoas que conservam o quarto da pessoa falecida exatamente como ela deixou no dia que faleceu. Esse hábito não é saudável e dificulta ainda mais o processo de aceitação.
Participe dos rituais, se você puder. Velório, enterro, cultos religiosos… tudo isso ajuda a aceitar que a pessoa se foi, e pode trazer algum conforto. A grande maioria das pessoas que estará lá vai querer o seu bem, e essa socialização é importante no processo.
O que eu posso dizer para alguém em luto?
Se você conhece alguém que está passando por um processo de luto, você não precisa dizer muita coisa. Só diga que sente muito. Ninguém precisa ter um discurso pronto para todas as ocasiões, muito menos esta. Mais importante do que saber o que dizer, é saber ouvir. Acolha o choro da pessoa que está de luto, acolha a raiva, a tristeza, o medo, a culpa… acolha tudo. Não tente utilizar a razão, porque a pessoa não vai ouvir. Caso a pessoa queira ser abraçada, abrace, e esteja lá.
Não utilize frases feitas do tipo: “Foi a vontade de Deus”, “Os bons morrem jovens”, “Chegou a hora dela”, “Ruim é para quem fica”, “Agora ela está num lugar melhor”… ou qualquer outra coisa. Além de esse tipo de coisa não dar conforto nenhum para a pessoa que está sofrendo, também não diz nada. Então, se você não quer dizer nada, melhor não dizer nada mesmo.

O que você pode fazer para ajudar, caso você realmente queira ajudar é oferecer ajuda. Normalmente, quando uma pessoa recebe a notícia de morte, tudo o que estava sendo feito acaba sendo deixado de lado. Talvez a pessoa precise de ajuda para limpar a casa, para dirigir, cozinhar, etc. Isso pode ser oferecido.
Você também pode ser o amigo que, depois de uns dias, chama a pessoa para sair, para se distrair da situação. E, caso a pessoa não queira sair, tudo bem. Apenas respeite e tenha paciência. É uma fase. Eventualmente vai passar e o convivio retornará à normalidade.

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